A Extraterritorialidade das Decisões Judiciais na Era Digital: Fundamentos e Limites

Por Publicado em: 28 de março de 2025Categorias: Análise

A internet, dada sua natureza transfronteiriça, desafia os tradicionais limites da jurisdição nacional, colocando em xeque a efetividade das decisões judiciais quando o conteúdo ilícito ultrapassa as fronteiras do Estado que promoveu a condenação.

Essa questão foi o ponto central discutido no Recurso Especial nº 2147711/SP, em que o Superior Tribunal de Justiça enfrentou espinhosa questão acerca da extensão global de ordens de remoção de conteúdo digital, estabelecendo um importante pilar para a tutela de direitos na esfera digital.

No caso concreto, a empresa brasileira Liotecnia Tecnologia em Alimentos S.A, do ramo alimentício, tomou conhecimento de vídeo no Youtube que alegava a presença de ratos em suas instalações.

Não obstante a situação, a Google se recusou a retirar o vídeo da plataforma. Assim, ajuizada ação judicial para remoção e indenização, o juízo de primeira instância determinou a remoção do vídeo apenas no Brasil, mas o Tribunal de Justiça estendeu a ordem para todo o mundo, motivo que levou a Google a levar o caso para o STJ.

A tese central vencedora, de autoria da Ministra Nancy Andrighi, fundamentou-se em três pilares jurídicos. Em primeiro lugar, defendeu-se a aplicação do art. 11 do Marco Civil da Internet(1), que estabelece a competência da jurisdição brasileira sobre provedores que operam no país, independentemente da localização física dos dados.

Também, foi resguardado o princípio da efetividade processual, que não pode ser frustrado pela fragmentação territorial em um ambiente digital globalizado, sob pena de se criar verdadeiras zonas livres de jurisdição.

Por fim, deu-se importância à conformidade com os parâmetros internacionais de direitos humanos, que admitem restrições proporcionais à liberdade de expressão quando em conflito com outros direitos fundamentais, como a honra e a reputação, vide art. 19.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos(2), desde que observados os requisitos de legalidade, necessidade e proporcionalidade.

Em contraponto, os ministros divergentes sustentaram que a aplicação de efeitos extraterritoriais violaria princípios do direito internacional privado, especialmente a soberania estatal e a competência concorrente das jurisdições nacionais. O argumento central residia

no fato de que seria tarefa do Direito Internacional Privado coordenar o exercício da jurisdição entre os países.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria, manter a ordem judicial que determinou a remoção global do Youtube do polêmico vídeo, em favor de Liotecnia Tecnologia em Alimentos S.A.

Ao decidir de tal maneira, consolidou-se entendimento pioneiro no direito brasileiro: a jurisdição nacional pode, em casos excepcionais e mediante critérios rigorosos ligados à proporcionalidade – como a especificidade do conteúdo, a comprovação do dano transnacional -, determinar medidas com eficácia global.

A decisão representa um equilíbrio sofisticado entre a soberania estatal e as demandas da sociedade moderna digitalizada, oferecendo um marco jurídico para futuros casos em que a internet desafia os limites tradicionais do poder jurisdicional, sem descuidar dos princípios do devido processo legal e da cooperação internacional.

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(1) Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

(2) O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

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Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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