A Reprodução de Obras Musicais via Streaming em Contratos Anteriores à Lei nº 9.610/98
O advento das plataformas de streaming mudou radicalmente a forma como os produtos culturais são consumidos globalmente. Filmes, livros, séries de TV e músicas que, anteriormente, tinham seu acesso restrito àqueles que adquiriam cópias físicas, hoje estão mais próximas do consumidor.
Conquanto a comodidade dos serviços de streaming represente imenso atrativo para os consumidores – não por menos o Spotify, no final de 2025, alcançou a marca de 252 milhões de usuários Premium(1) -, a forma de fazer negócios nesse mercado nem sempre está em harmonia com a visão dos artistas que produzem os bens.
Nesse sentido, diversos músicos já se manifestaram contra as plataformas de streaming. De maneira muito enfática, a harpista e compositora Joanna Newsom, reverenciada na cena folk e alternativa americana, afirmou que o “Spotify é uma cabala vil de grandes gravadoras”, de sorte que “o negócio é construído desde o início para rodear a ideia de pagar seus artistas”(2). Mais recentemente, a cantora islandesa Björk apontou o gigante do streaming musical como “provavelmente a pior coisa que aconteceu aos músicos”(3).
O embate entre músicos e serviços de streaming alcançou, também, o território brasileiro, gerando debates e conclusões jurídicas importantíssimas. Nessa conjuntura, em 12/11/2025, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 2029976/SP, consignando pontos que merecem destaque, sobretudo em relação à autorização para reprodução de obras musicais via streaming no âmbito de contratos firmados anteriormente à Lei nº 9.610 de 1988.
A controvérsia dos autos centra-se em ação ajuizada pelos celebres músicos Roberto Carlos e Erasmo Carlos – hoje espólio –, em que se pretendia o reconhecimento de que uma série de contratos, firmados entre 1960 e 1980 com EDITORA e IMPORTADORA MUSICAL FERMATA DO BRASIL LTDA, tratavam-se de contratos de edição, de maneira que teriam os autores o direito de denunciar os contratos a qualquer tempo, a fim de extingui-los.
Subsidiariamente, defendeu-se a tese de que os contratos celebrados não permitiriam expressamente que a Ré, ora Recorrida, explorasse as obras por meio de streaming, requerendo-se, de tal forma, a declaração da inexistência de direitos autorais da Ré sobre exploração via tecnologias digitais.
De saída, o STJ traçou didática distinção entre os contratos usualmente celebrados pelos titulares de direitos autorais, os Contratos de Cessão e Contratos de Edição. Enquanto “os primeiros se caracterizam por implicar a transferência dos direitos patrimoniais do autor, os segundos são aqueles pelos quais o contratante (editor) assume a obrigação de publicar ou fazer publicar obra artística, tendo como principal característica a sua duração limitada (seja quanto ao tempo de vigência seja quanto ao número de edições que serão objeto de publicação)”(4).
Tendo o STJ mantido a classificação dos contratos controvertidos como de Cessão, debruçamo-nos, agora, sobre a questão que justifica a presente exposição.
Conforme exposto nas razões de decidir, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que o streaming se enquadra nas disposições normativas dos art. 29 VII, VIII, “i”, IX e X, da Lei 9.610/98(5), que assim orientam:
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
(…)
VII – a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;
i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;
IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;
X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.
Outrossim, importa citar, também, o art. 49, V da mesma lei, vital para proteção dos interesses dos artistas:
Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:
(…)
V – a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;
À vista disso, à princípio: i) a utilização de obras musicais em plataformas de streaming necessitaria de autorização específica; e ii) a cessão de direitos autorais não se operaria para modalidades de utilização inexistentes à época do contrato, como é o caso concreto.
Todavia, a proteção específica encontra óbice temporal, isso pois, “inexistindo nos diplomas legais vigentes à época da celebração dos instrumentos disposições legais com conteúdo normativo assemelhado ao previsto no art. 49, V, da Lei nº 9.610 /1998 e ausentes outras restrições à liberdade dos contratantes de dispor sobre direitos no momento da celebração dos contratos, possível a exploração das obras cedidas pela modalidade de utilização streaming pela cessionária(6)”.
De tal maneira, o STJ decidiu por privilegiar à irretroatividade da Lei, mantendo o Acórdão recorrido quase integralmente.
A decisão da Corte da Cidadania, ainda que importante para a segurança jurídica, levanta questionamentos acerca da perda de autonomia e controle dos artistas sobre seus próprios bens jurídicos, de sorte que músicos podem ter suas obras distribuídas de forma com a qual não compactuam.
A discussão acima, entretanto, merece holofote próprio em ocasião adequada.
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(2) Latimes
(3) Variety
(4) REsp 2029976/SP.
(5) Vide REsp 1.559.264/RJ.
(6) REsp 2.148.396/RJ