Financiamento de litígios: A identidade do financiador deve ser revelada no processo?

Por Publicado em: 23 de agosto de 2024Categorias: Análise

O financiamento de litígios é uma prática ainda pouco regulamentada dentro do direito brasileiro. Apesar de estranha em um primeiro momento, a medida tem um papel fundamental no que diz respeito à garantia do direito constitucional de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal(1). Isto porque, salvo nos casos em que é concedido o benefício da justiça gratuita, uma das maiores preocupações das partes dentro de um processo é com pagamento das custas e despesas que podem incluir taxas, tarifas, honorários advocatícios e periciais, por exemplo.

Nesse cenário, mediante a análise da probabilidade de êxito em uma demanda, uma parte, que não tenha recursos suficientes para arcar sozinho com os ônus econômicos daquela causa, pode procurar um terceiro, financiador, para custeá-la. Ressalta-se que este crédito pode ser obtido de inúmeras formas, como por meio de financiamento bancário, mútuo com garantia ou por cessão de créditos. Esta última modalidade consiste, em síntese, em um terceiro, estranho a uma relação jurídica, custear total ou parcialmente os custos de uma parte dentro de um processo – ou procedimento arbitral – a fim de obter, em contrapartida, o recebimento de eventuais créditos decorrentes da ação.

No Brasil, em que pese a ausência de regulamentação específica sobre a matéria, tal mercado vem crescendo constantemente, de modo que já há sociedades empresárias cujo objeto consiste exclusivamente no financiamento de litígios.(2) Todavia, na falta de previsão legal, inúmeras dúvidas surgem a respeito da natureza da relação deste terceiro com a ação em si, sobretudo no que diz respeito aos seus direitos e deveres.

Sobre a questão, Napoleão Casado Filho(3) esclarece que não há dúvidas a respeito da legalidade da medida, visto que a cessão de créditos trata, via de regra, “de direitos patrimoniais disponíveis que podem, inclusive, ser renunciados pelas partes”. Complementa, ainda, que entender em contrário provocaria situação juridicamente insustentável, contrária ao direito constitucional de acesso à justiça.

Uma das maiores dificuldades relacionadas ao tema diz respeito ao dever de se revelar a identidade deste terceiro ao juiz ou ao Tribunal Arbitral. No caso do processo civil, o Código de Processo Civil é claro ao expor uma série de hipóteses em que o magistrado não pode atuar, por conta da existência de impedimento e suspeição, que são situações objetivas em que o magistrado não deve atuar, em razão da possibilidade de violação da sua própria imparcialidade. No caso da Arbitragem, tem-se como praxe a utilização das Diretrizes da IBA(4), que contém uma série de parâmetros para que um Árbitro analise, objetivamente, se ele é apto a julgar um caso, em razão da sua relação com as partes.

Nesse sentido, a revelação da identidade do terceiro financiador se torna bastante controversa, uma vez que, inegavelmente este terceiro possui interesse, ainda que exclusivamente econômico, no litígio em questão. Sobre a questão, um dos primeiros casos no Brasil foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (5) que, em 2022, entendeu que, a menos que a outra parte do processo demonstre a existência de alguma irregularidade processual, “mostra-se completamente irrelevante a perquirição sobre a identidade dos financiadores das despesas processuais”, razão pela qual entendeu ser desnecessária a juntada dos contratos de financiamento aos autos do processo.

Na arbitragem, por sua vez, algumas Câmaras e guias internacionais tem disposições próprias sobre a matéria. Segundo o regulamento da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC) (6), a arbitragem tem que somente revelar a identidade do terceiro, sendo desnecessária a juntada de quaisquer outras informações relativas ao financiamento. As regras da IBA (7) sobre conflito de interesses também correm no mesmo sentido.

Depreende-se, portanto, que o financiamento de litígios no Brasil ainda é um tema que carece de previsão legal específica. Todavia, tendo em vista os entendimentos que já vêm sendo adotados pelos Tribunais e Câmaras, nacionais e internacionais, vê-se que nos casos em que as partes se valem destes mecanismos, ao que parece, é necessário somente que as partes revelem a identidade do financiador, mas não os contratos de financiamento firmados.

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(1) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito

(2) Investnews

(3) Arbitragem eAcesso à Justiça : o novo paradigma do third party fundillg / Napoleão Casado Filho, – São Paulo: Saraiva, 2017,

(4) Ibanet

(5) TJSP;  Agravo de Instrumento 2153411-63.2022.8.26.0000; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 20/09/2022; Data de Registro: 20/09/2022

(6) A arbitragem tem que revelar tão somente a identidade do terceiro (9.6)

(7) IBA Guia em conflito de interesse em arbitragem internacional. 7 (a) As partes devem informar tão somente a identidade destes terceiros

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Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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