O direito ao divórcio como desdobramento da liberdade de autodeterminação individual
O direito ao divórcio como desdobramento da liberdade de autodeterminação individual
Por Leila Francisca Mendes Ferreira
Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil (CENSEC), houve um aumento considerável no número de divórcios durante a pandemia, entre os meses de maio a junho de 2020 – em junho, foram registrados 5.306 divórcios, e em maio, 4.471. É certo que a hiperconvivência do casal trazida pelas medidas de isolamento social pode acabar atuando como uma “lente de aumento” sobre os problemas já existentes na relação.
Nesse contexto, traçamos um panorama geral sobre o divórcio no direito brasileiro.
O direito ao divórcio se consolidou como um derivado da própria liberdade de autodeterminação dos indivíduos com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, que deu nova redação ao art. 226, § 6º, da Constituição da República, suprimindo a exigência de separação judicial ou de fato do casal antes do divórcio.
Assim, ficou estabelecido que o único requisito para o divórcio é o “desafeto”, em outras palavras, a falta de vontade da pessoa em permanecer casada, independentemente de qualquer lapso temporal ou de qualquer motivo.
O divórcio, nessa visão, pode ser conceituado como uma medida jurídica obtida por iniciativa das partes, em conjunto ou isoladamente, que dissolve integralmente o casamento, extinguindo tanto os deveres jurídicos entre os ex-cônjuges e o regime de bens, como o próprio vínculo do matrimônio, podendo ser feito pela via judicial ou pela via extrajudicial, através de escritura pública.
Além disso, o divórcio pode ser consensual ou litigioso.
Litigioso é o divórcio no qual as partes não conseguiram chegar a um consenso no que tange as cláusulas da dissolução do casamento, como a partilha dos bens, o pagamento de pensão para os filhos incapazes e, eventualmente, entre os ex-cônjuges, o regime de visitas e a guarda dos filhos, entre outras coisas.
É importante frisar que o litígio não se dá sobre a concessão ou não do divórcio, que é direito potestativo da pessoa, conforme a clara opção da Constituição da República. Não se discute a “culpa” pela dissolução do vínculo matrimonial, o que seria até mesmo inconstitucional, mas sim questões subjacentes, que podem inclusive ser discutidas em ações próprias (por exemplo, em ações autônomas de alimentos, de guarda, de regulamentação de visitas, etc.).
Por outro lado, o divórcio consensual (também chamado de amigável) corresponde ao fim do casamento por acordo mútuo entre os cônjuges, extinguindo o vínculo matrimonial sem qualquer conflito de interesses.
Quando é feito pela via judicial, o divórcio amigável depende de pedido expresso de ambos os cônjuges e deve obedecer aos requisitos dos artigos 731 a 734 do Código de Processo Civil, necessitando de homologação por decisão judicial. Cabe ressalvar, ainda, que as partes podem adiar a partilha dos bens para momento posterior, hipótese na qual qualquer um dos ex-cônjuges poderá entrar com ação de partilha do patrimônio comum.
Ainda em relação ao divórcio consensual, tem-se que ele pode ser feito pela via administrativa (extrajudicial), mediante a lavratura de escritura pública em cartório, porém apenas quando o casal não dispõe sobre interesse de filho incapaz – nesses casos, o divórcio necessariamente deve ser pela via judicial, mesmo quando há consenso entre as partes. O impedimento da via extrajudicial quando há interesse de filhos incapazes não se aplica quando tais interesses (por exemplo, a guarda dos filhos e a prestação de alimentos em favor deles) forem definidos pela via judicial através das ações próprias. Nesses casos, o casal pode deliberar sobre o fim do matrimônio pela via administrativa, podendo haver a distribuição das ações próprias para dispor sobre os interesses indisponíveis dos filhos incapazes em momento anterior ou posterior à lavratura da escritura, em nada dependendo dela.
A possibilidade de realização do divórcio administrativamente é um avanço notável do direito brasileiro, trazendo maior efetividade ao direito das partes em comparação ao lento e oneroso processo judicial. Assim, as partes conseguem, em poucas semanas, resolver uma questão que, se fosse levada ao judiciário, demoraria meses e até mesmo anos até o trânsito em julgado da sentença.
Nesse sentido, também é muito pertinente a redação do artigo 733 do Código de Processo Civil, segundo o qual a escritura pública de dissolução do casamento independe de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro e levantamento de valores em instituições financeiras. Dessa forma, ao contrário do que acontece no divórcio judicial, que depende da decretação pelo poder judiciário e só pode ser registrado após o trânsito em julgado da sentença, a escritura pública de dissolução do casamento pode ser averbada no registro civil e de imóveis tão logo seja lavrada e entregue aos ex-cônjuges, efetivando a garantia constitucional do divórcio como feixe da própria liberdade humana de autodeterminação.
Por fim, cabe abordar a possibilidade de decretação liminar do divórcio. Considerando a posição adotada pela Constituição da República com a Emenda Constitucional nº 66/2010, em que o divórcio, para além de um direito potestativo, é um próprio derivado da dignidade da pessoa humana, é certo que a sua decretação pode ser requerida como tutela de evidência, nos termos do art. 311, do Código de Processo Civil, uma vez que tal tutela provisória possui como único requisito a probabilidade do direito, independentemente de perigo de dano pela demora do processo. Assim, a decretação liminar do divórcio teria fulcro no art. 311, II, do CPC, por se tratar de alegação que pode ser comprovada documentalmente – pois basta a juntada da certidão de casamento e a manifestação de vontade da parte autora –, com respaldo em norma de índole constitucional.
A possibilidade ou não de decretar o divórcio liminarmente ainda é tema bastante controvertido na jurisprudência. Enquanto que há julgados que entendem que, devido ao caráter potestativo do direito ao divórcio, não lhe cabe oposição pela outra parte, de modo que é cabível a decretação do divórcio liminarmente com fulcro no art. 311, II e IV, do CPC, a corrente contrária entende pela necessidade da citação da outra parte e da apresentação de defesa, mesmo o divórcio sendo um direito potestativo. Em que pese o mérito da segunda corrente, a posição adotada pela primeira corrente se revela mais congruente com a sistemática processual do combate ao dano marginal gerado pelo ônus do tempo do processo, mormente se tratando de direito potestativo constitucional de eficácia imediata.
Com isso, caso se chegue à conclusão de que a manutenção da vida conjugal é impossível, percebe-se que o direito brasileiro traz o divórcio como um direito potestativo constitucional dos sujeitos, que pode ser exercido unilateralmente, a qualquer tempo, sem necessidade de aceitação pelo outro cônjuge, tampouco de exposição dos motivos que ensejaram no desejo do término da relação.
O divórcio, portanto, materializa o direito de cada pessoa de decidir qual o padrão de vida digna que deseja para si, de modo que é preciso enxergar a dissolução do casamento por lentes mais humanizadas, valorizando a evolução histórica do instituto como um instrumento de proteção da integridade e da dignidade da pessoa humana.
Leila Francisca Mendes Ferreira é graduanda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e profissional integrante do time do escritório.